Sobre a Violência
“...Esperar de pessoas que não tem a menor noção do que é a coisa pública (res publica) que se comportem de maneira não violenta e discutam racionalmente em questões de interesse não é realista nem razoável.
A violência, sendo instrumental por natureza, é racional à medida que é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la. E posto que, quando agimos, nunca sabemos com certeza quais serão as consequências finais do que estamos fazendo, a violência só pode permanecer racional se almeja objetivos a curto prazo.
O perigo da violência, mesmo se ela se move conscientemente dentro de uma estrutura não-extremista de objetivos de curto prazo, sempre será o de que os meios se sobrepõe ao fim.
Segundo Sorel e Pareto, quanto maior é a burocratização da vida pública, maior será a atração pela violência. Em uma burocracia plenamente desenvolvida não há ninguém a quem se possa inquirir, a quem se possam apresentar queixas, sobre quem exercer as pressões do poder. A burocracia é a forma de governo na qual todas as pessoas estão privadas da liberdade política, do poder de agir, pois o domínio de Ninguém não é um não-domínio, e onde todos são igualmente impotentes temos uma tirania sem tirano.
No plano das ideologias, a coisa é muito confusa, pois é óbvio o fato de que as imensas máquinas partidárias conseguiram sobrepujar a voz dos cidadãos em todo o lugar, mesmo em países onde a liberdade está intacta.
A transformação em administração, ou das repúblicas em democracias, e o desastroso encolhimento da esfera pública que as acompanhou têm uma longa e complicada história ao longo da época moderna; e esse processo tem sido consideravelmente acelerado durante os últimos cem anos por meio do surgimento das burocracias partidárias. A liberdade, ou seja, o poder de agir, encolhe todos os dias, a não ser para os criminosos nos chamados países livres e democráticos.
Nem a violência, nem o poder são fenômenos naturais, isto é uma manifestação do processo vital, ou, eles pertencem ao âmbito político dos negócios humanos, cuja qualidade essencialmente humana é garantida pela faculdade do homem para agir, a habilidade para começar algo novo. Nenhuma outra habilidade humana sofreu tanto com o progresso da época moderna, pois o progresso, como viemos a entendê-lo, significa crescimento, o processo implacável de ser mais e mais, maior e maior. Quanto maior torna-se um país em termos populacionais, de objeto e de posses, maior a administração, maior o poder anônimo dos administradores.
Muito da presente glorificação da violência é causado pela severa frustração da faculdade de ação no mundo moderno. Não sabemos se essas ocorrências são o começo de algo novo, um novo exemplo, ou a morte agônica de uma faculdade que a humanidade está a ponto de perder.
Quaisquer que sejam as vantagens e desvantagens administrativas da centralização, seu resultado político é sempre o mesmo; a monopolização do poder causa o ressecamento ou o esgotamento do todas as fontes autênticas de poder no país. Se o poder tem algo a ver com o queremos-e-podemos, enquanto distinto do mero nós-podemos, então temos que admitir que nosso poder tornou-se impotente. Será que o eu-quero e o eu-posso separaram-se? Pode-se dizer que tudo o que sabemos e tudo o que podemos, finalmente voltou-se contra aquilo que somos?
Não sabemos onde o desenvolvimento vai nos conduzir, mas sabemos, ou deveríamos saber, que cada diminuição no poder é um convite à violência. Pelo menos porque aqueles que detêm o poder e o sentem escapar de suas mãos, sejam os governantes, sejam os governados, tem sempre achado difícil resistir à tentação de substituí-lo pela violência.”
Do Livro Sobre a Violência
de Hannah Arendt
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